KIERKEGAARD





Kierkegaard é um dos raros autores cuja vida exerceu profunda influência no desenvolvimento da obra. As inquietações e angústias que o acompanharam estão expressas em seus textos, incluindo a relação de angústia e sofrimento que ele manteve com o cristianismo – herança de um pai extremamente religioso, que cultuava a maneira exacerbada os rígidos princípios do protestantismo dinamarquês, religião de Estado.


Sétimo filho de um casamento que já durava muitos anos – nasceu em 1813, quando o pai, rico comerciante de Copenhague, tinha 56 e a mãe 44 –, chamava a si mesmo de "filho da velhice" e teria seguido a carreira de pastor caso não houvesse se revelado um estudante indisciplinado e boêmio. Trocou a Universidade de Copenhague, onde entrara em 1830 para estudar filosofia e teologia, pelos cafés da cidade, os teatros, a vida social.

Foi só em 1837, com a morte do pai e o relacionamento com Regina Oslen (de quem se tornaria noivo em 1840), que sua vida mudou. O noivado, em particular, exerceria uma influência decisiva em sua obra. A partir daí seus textos tornaram-se mais profundos e seu pensamento, mais religioso. Também em 1840 ele conclui o curso de teologia, e um ano depois apresentava "Sobre o Conceito de Ironia", sua tese de doutorado.

Esse é o momento da segunda grande mudança em sua vida. Em vez de pastor e pai de família, Kierkegaard escolheu a solidão. Para ele, essa era a única maneira de vivenciar sua fé. Rompido o noivado, viajou, ainda em 1841, para a Alemanha. A crise vivida por um homem que, ao optar pelo compromisso radical com a transcendência, descobre a necessidade da solidão e do distanciamento mundano, está em Diários.

Na Alemanha, foi aluno de Schelling e esboça alguns de seus textos mais importantes. Volta a Copenhague em 1842, e em 1843 publica A Alternativa, Temor e Tremor e A Repetição. Em 1844 saem Migalhas Filosóficas e O Conceito de Angústia. Um ano depois, é editado As Etapas no Caminho da Vida e, em 1846, o Post-scriptum a Migalhas Filosóficas. A maior parte desses textos constitui uma tentativa de explicar a Regina, e a ele mesmo, os paradoxos da existência religiosa. Kierkegaard elabora seu pensamento a partir do exame concreto do homem religioso historicamente situado. Assim, a filosofia assume, a um só tempo, o caráter socrático do autoconhecimento e o esclarecimento reflexivo da posição do indivíduo diante da verdade cristã.

Polemista por excelência, Kierkegaard criticou a Igreja oficial da Dinamarca, com a qual travou um debate acirrado, e foi execrado pelo semanário satírico O Corsário, de Copenhague. Em 1849, publicou Doença Mortal e, em 1850, Escola do Cristianismo, em que analisa a deterioração do sentimento religioso. Morreu em 1855.

Filósofo ou Religioso?

A posição de Kierkegaard leva algumas pessoas a levantar dúvidas a respeito do caráter filosófico de seu pensamento. Pra elas, tratar-se-ia muito mais de um pensador religioso do que de um filósofo. Para além das minúcias que essa distinção envolveria, cabe verificar o que ela pode trazer de esclarecedor acerca do estilo de pensamento de Kierkegaard. Pode-se perguntar, por exemplo, quais as questões fundamentais que lhe motivam a reflexão, ou, então, qual a finalidade que ele intencionalmente deu à sua obra.

Estamos habituados a ver, na raiz das tentativas filosóficas que se deram ao longo da história, razões da ordem da reforma do conhecimento, da política, da moral. Em Kierkegaard não encontramos, estritamente, nenhuma dessas motivações tradicionais. Isso fica bem evidenciado quando ele reage às filosofias de sua época – em especial à de Hegel. Não se trata de questionar as incorreções ou as inconsistências do sistema hegeliano. Trata-se muito mais de rebelar-se contra a própria idéia de sistema e aquilo que ela representa.

Para Hegel, o indivíduo é um momento de uma totalidade sistemática que o ultrapassa e na qual, ao mesmo tempo, ele encontra sua realização. O individual se explica pelo sistema, o particular pelo geral. Em Kierkegaard há um forte sentimento de irredutibilidade do indivíduo, de sua especificidade e do caráter insuperável de sua realidade. Não devemos buscar o sentido do indivíduo numa harmonia racional que anula as singularidades, mas, sim, na afirmação radical da própria individualidade.

De onde provém, no entanto, essa defesa arraigada daquilo que é único? Não de uma contraposição teórico-filosófica a Hegel, mas de uma concepção muito profunda da situação do homem, enquanto ser individual, no mundo e perante aquilo que o ultrapassa, o infinito, a divindade. A individualidade não deve portanto ser entendida primordialmente como um conceito lógico, mas como a solidão característica do homem que se coloca como finito perante o infinito. A individualidade define a existência.

Para Kierkegaard, o homem que se reconhece finito enquanto parte e momento da realização de uma totalidade infinita se compraz na finitude, porque a vê como uma etapa de algo maior, cujo sentido é infinito. Ora, comprazer-se na finitude é admitir a necessidade lógica de nossa condição, é dissolver a singularidade do destino humano num curso histórico guiado por uma finalidade que, a partir de uma dimensão sobre-humana, dá coerência ao sistema e aplaca as vicissitudes do tempo.

Mas o homem que se coloca frente a si e a seu destino desnudado do aparato lógico não se vê diante de um sistema de idéias mas diante de fatos, mais precisamente de um fato fundamental que nenhuma lógica pode explicar: a fé. Esta não é o sucedâneo afetivo daquilo que não posso compreender racionalmente; tampouco é um estágio provisório que dure apenas enquanto não se completam e fortalecem as luzes da razão. É, definitivamente, um modo de existir. E esse modo me põe imediatamente em relação com o absurdo e o paradoxo. O paradoxo de Deus feito homem e o absurdo das circunstâncias do advento da Verdade.

Cristo, enquanto Deus tornado homem, é o mediador entre o homem e Deus. É por meio de Cristo que o homem se situa existencialmente perante Deus. Cristo é portanto o fato primordial para a compreensão que o homem tem de si. Mas o próprio Cristo é incompreensível. Não há portanto uma mediação conceitual, algum tipo de prova racional que me transporte para a compreensão da divindade. A mediação é o Cristo vivo, histórico, dotado, e o fato igualmente incompreensível do sacrifício na cruz. Aqui se situam as circunstâncias que fazem do advento da Verdade um absurdo: a Verdade não nos foi revelada com as pompas do conceito e do sistema. Ela foi encarnada por um homem obscuro que morreu na cruz como um criminoso. O acesso à Verdade suprema depende pois da crença no absurdo, naquilo que São Paulo já havia chamado de "loucura". No entanto, é o absurdo que possibilita a Verdade. Se permanecesse a distância infinita que separa Deus e o homem, este jamais teria acesso à Verdade. Foi a mediação do paradoxo e do absurdo que recolocou o homem em comunicação com Deus. Por isso devemos dizer: creio porque é absurdo. Somente dessa maneira nos colocamos no caminho da recuperação de uma certa afinidade com o absoluto.

Não há, portanto, outro caminho para a Verdade a não ser o da interioridade, o aprofundamento da subjetividade. Isso porque a individualidade autêntica supõe a vivência profunda da culpa: sem esse sentimento, jamais nos situaremos verdadeiramente perante o fato da redenção e, conseqüentemente, da mediação do Cristo.

O Sofrimento Necessário

A subjetividade não significa a fuga da generalidade objetiva: ao contrário, somente aprofundando a subjetividade e a culpa a ela inerente é que nos aproximaremos da compreensão original de nossa natureza: o pecado original. E a compreensão irradia luz sobre a redenção e a graça, igualmente fundamentais para nos sentirmos verdadeiramente humanos, ou seja, de posse da verdade humana do cristianismo. A autêntica subjetividade, insuperável modo de existir, se realiza na vivência da religiosidade cristã.

A subjetividade de Kierkegaard não é tributária apenas da atmosfera romântica que envolvia sua época. Seu profundo significado a-histórico tem a ver, mais do que com essa característica do Romantismo, com uma concepção de existência que torna todos os homens contemporâneos de Cristo. O fato da redenção, embora histórico, possui uma dimensão que o torna referência intemporal para se vivenciar a fé. O cristão é aquele que se sente continuamente em presença de Deus pela mediação do Cristo. Por isso a religião só tem sentido se for vivida como comunhão com o sofrimento da cruz. Por isso é que Kierkegaard critica o cristianismo de sua época, principalmente o protestantismo dinamarquês, penetrado, segundo ele, de conceituação filosófica que esconde a brutalidade do fato religioso, minimiza a distância entre Deus e o homem e sufoca o sentimento de angústia que acompanha a fé.

Essa angústia, no entender de Kierkegaard, estaria ilustrada no episódio do sacrifício de Abraão. Esse relato bíblico indica a solidão e o abandono do indivíduo voltado unicamente para a vivência da fé. O que Deus pede a Abraão – que ele sacrifique o único filho para demonstrar sua fé – é absurdo e desumano segundo a ética dos homens.

Não se trata, nesse caso, de optar entre dois códigos de ética, ou entre dois sistemas de valores. Abraão é colocado diante do incompreensível e diante do infinito. Ele não possui razões para medir ou avaliar qual deve ser sua conduta. Tudo está suspenso, exceto a relação com Deus.

O Salto da Fé

Abraão não está na situação do herói trágico que deve escolher entre valores subjetivos (individuais e familiares) e valores objetivos (a cidade, a comunidade), como no caso da tragédia grega. Nada está em jogo, a não ser ele mesmo e a sua fé. Deus não está testando a sabedoria de Abraão, da mesma forma como os deuses testavam a sabedoria de Édipo ou de Agamenon. A força de sua fé fez com que Abraão optasse pelo infinito.

Mas, caso o sacrifício se tivesse consumado, Abraão ainda assim não teria como justificá-lo à luz de uma ética humana. Continuaria sendo o assassino de seu filho. Poderia permanecer durante toda a vida indagando acerca das razões do sacrifício e não obteria resposta. Do ponto de vista humano, a dúvida permaneceria para sempre. No entanto Abraão não hesitou: a fé fez com que ele saltasse imediatamente da razão e da ética para o plano do absoluto, âmbito em que o entendimento é cego. Abraão ilustra na sua radicalidade a situação de homem religioso. A fé representa um salto, a ausência de mediação humana, precisamente porque não pode haver transição racional entre o finito e o infinito. A crença é inseparável da angústia, o temor de Deus é inseparável do tremor.

Por tudo o que a existência envolve de afirmação de fé, ela não pode ser elucidada pelo conceito. Este jamais daria conta das tensões e contradições que marcam a vida individual. Existir é existir diante de Deus, e a incompreensibilidade da infinitude divina faz com que a consciência vacile como diante de um abismo. Não se pode apreender racionalmente a contemporaneidade do Cristo, que faz com que a existência cristã se consuma num instante e ao mesmo tempo se estenda pela eternidade. A fé reúne a reflexão e o êxtase, a procura infindável e a visão instantânea da Verdade; o paradoxo de ser o pecado ao mesmo tempo a condição de salvação, já que foi por causa do pecado original que Cristo veio ao mundo. Qualquer filosofia que não leve em conta essas tensões, que afinal são derivadas de estar o finito e o infinito em presença um do outro, não constituirá fundamento adequado da vida e da ação. A filosofia deve ser imanente à vida. A especulação desgarrada da realidade concreta não orientará a ação, muito simplesmente porque as decisões humanas não se ordenam por conceitos, mas por alternativas e saltos.